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COLUNISTAS Quarta-feira, 08 de Abril de 2020, 02:52 - A | A

08 de Abril de 2020, 02h:52 - A | A

COLUNISTAS / Suelme Evangelista

Cuiabá, nossa Aldeia



A posição geográfica privilegiada da cidade de Cuiabá localizada no centro da América Austral ou da América do Sul possibilitou uma condição especial e mística para concentração de inúmeras etnias indígenas no período denominado pré-colonial e principalmente colonial.  

A colonização da américa portuguesa começou no extenso litoral atlântico e depois avançou em direção ao interior da colônia, através das monções e bandeiras. No outro extremo do continente sul-americano em direção diametralmente oposta a colonização hispânica também avançava, no eixo oceano pacífico Andes/Potosí- interior da América. Os dois movimentos desbravadores para o centro do continente causaram uma espécie de compressão ou força centrifuga que forçou a migração de milhares de ameríndios para o coração da América do Sul somando-se a inúmeras povos milenarmente existentes nesse território.  

A fuga pra dentro da mata ou interior do continente por parte dos ameríndios sempre foi um recurso estratégico para escapar das garras da colonização: “guerras justas” de extermínio e da escravização humana, como “negros da terra” pelo império português ou para fugir da exploração pela “mita” espanhola. Como consequência, Mato Grosso possui atualmente o segundo maior contingente de povos ameríndios do Brasil.  

Algumas projeções arqueológicas e antropológicas estimam a existência de aproximadamente 100 mil ameríndios, onde hoje se localiza o pantanal e a cidade de Cuiabá, falando dezenas de línguas e inúmeras culturas diferentes. Pela falta de pesquisa não é possível nem imaginar essa babel nesse espaço antes da invasão e reterritorialização lusitana.  

Barbosa de Sá, um dos mais famosos cronistas oitocentista de Cuiabá tentou em vão gravar todos os nomes das etnias que habitavam no rio Cuiabá e escreveu: “Foram achando tantas nações de gentes que não cabem nos arquivos da memória e só me lembro das seguintes: Caroyas, Taquasentes, Xixibes, Xanites, Porrudos, Xacororés, Aragoares, Coxiponés, Pocuris, Araponenes, Mocos, Guatós, Araviras, Beripoconés, Arapares, Hytapores, Iaymes, Guaicurus, Bororos, Paiaguás, Xaraés, Penacuicas e outros.” Segundo o geógrafo José Eduardo F. M. da Costa, pelo menos cinco denominações descritas acima são Bororo: Porrudos, Xacororés, Coxiponés, Beripoconés e Aravirás.  

Parte das bandeiras sertanistas de exploração do interior da colônia tinha como objetivo o “preamento” do gentio ou escravização ameríndia. No mesmo registro, Barbosa de Sá realiza a primeira referência aos ameríndios nessa região de Cuiabá, em 1718, na região do morro Santo Antônio  (referência de nosso Brasão das armas de Mato Grosso) que em Bororo se chamava Toroari, ‘ninho do gavião’ navegando na embocadura do rio Coxipó acima: “Foi o primeiro que subiu este rio Antônio Pires de Campos em procura do gentio Coxiponé chegado a uma aldeia deles aonde é hoje a capela de São Gonçalo ai prendeu muitos e voltou para baixo a procura de mais frotas por essas largas dilatadas baias em procura demais nações.”   

Não por acaso, atualmente a imensa região sul da capital que denominamos de Coxipó surgida na margem esquerda do rio e toda a nomenclatura derivada do mesmo nome, Coxipó-Açu, da Ponte, do Ouro e Mirim são topônimos primitivos que denotam uma imensa territorialidade Bororo em toda a foz do mesmo rio até suas nascentes.  

O surgimento de Cuiabá enquanto acontecimento é narrado por Barbosa de Sá numa história quase mítica e bela que envolve também os ameríndios. Teria o sorocabano Miguel Sutil recém chegado em 1721 no Coxipó do Ouro, (nome de uma importante avenida de Cuiabá) pedido a alguns dos seus índios “carijós” que coletassem mel silvestre no cerrado. Os mesmos voltaram no outro dia sem o mel e ao ser indagado por seu “amo”o que houvera? O índio perguntou-lhe: se ele queria ouro ou mel? Depois da sinalização positiva de Sutil, por óbvio, o índio teria entregue 2,7 quilos de ouro de aluvião avisando que onde encontrou essa jazida, tinha muito mais.    

Sutil nem dormiu nessa noite e amanheceu com o pé no eito, e numa rápida garimpada na região onde hoje localiza-se o entroncamento da avenida Prainha com a Cel. Escolástico (nos pés do Morro da Luz)  nas margens do córrego da Prainha ou Ikuiêbo na língua Bororo “águas das estrelas” conseguiu extrair aproximadamente 9 quilos de ouro em um dia de trabalho, sem precisar socavar nem 80 centímetros de profundidade. Pela indicação do topônimo Ikuiêbo mais uma vez constatamos a existência de uma imensa territorialidade ameríndia que se estendia do Morro das Cercanias (da Luz) até o rio Cuiabá.  

Se esse achado fosse hoje, em valores atuais a venda dessa primeira lavra renderia algo em torno de 1 milhão de reais, imagina então a força dessas notícias no restante da colônia.  

Existe na literatura várias hipóteses sobre a origem do nome Cuiabá, todas de origem Bororo: a primeira, mais conhecida pelo senso comum, surgiu a partir da interpretação dos escritos de Barbosa de Sá por parte de alguns historiadores.  Nessa tese, mais folclórica que cientifica, uma cuia palavra da língua tupi-guarani teria caído nas águas do rio e rodou e o português no afã de explicar o ocorrido tentou descrever, cuia-vá e por derivação, Cuiabá. Já o sertanista Antônio Pires de Campos (Sec. XVIII), ao noticiar sobre esse sertões à administração de Portugal informou que nas cabeceiras deste rio habitavam os indígenas Cuiabazes.  

A versão defendida pelo historiador Paulo Pitaluga em dois livros é baseada na sua pesquisa em 4 mapas coloniais espanhol que fazem várias referências nominais a Cuiabá como- Cuiaverá- Cuiaberá -Cuiavá. Essa expressão Cuiaverá tem origem na língua tupi-guarani, que significa “Rio das Lontras Brilhantes”. Essa terminologia também é defendida e usada pelo escritor Yvens Scaff, sendo inclusive o título de um dos seus  livros, Kyvaverá.  

Na última versão, apontada pelo historiador Carlos A. Rosa e pesquisada em doutorado pela profa. Thereza Martha Presotti da UFMT, a terminologia adequada seria Ikuiapá que significa “lugar de pesca com flecha arpão”, alusivo ao lugar onde deságua o córrego Prainha no rio Cuiabá. Tal constatação usa como referência a memória de anciãos Bororo,  dos indigenistas Antônio João de Jesus e Guilherme Aires Lima e estudos linguísticos publicados na Enciclopédia Bororo do Padre Salesiano Antônio Colbacchini de 1910.  

Os ameríndios chamados de Boe ou Bororo segundo José Eduardo F. M. da Costa “ocupava um vasto território que se estendia, em arco, do rio Otuquis, no Oriente boliviano, adentrava no Brasil pelas cabeceiras do rio Paraguai, delimitado ao Sul pelo rio Taquari, até alcançar a nordeste, no contraforte do planalto, o rio das Mortes e as nascentes do Araguaia. Esse imenso complexo sociocultural, composto por diferentes grupos locais, foi fragmentado e dividido em novas categorias: Bororo Ocidental e Oriental, em referência ao eixo de penetração colonial representado pelos rios São Lourenço-Cuiabá.  

Atualmente esses povos vivem em cinco Terras Indígenas: Tereza Cristina, Meruri, Tadarimana, Perigara e na Missão de Sangradouro totalizando 1.817 pessoas.  

Passados centenas de anos de contato e invasão de seus imensos antigos territórios, restaram apenas dois grupos remanescentes no Pantanal: 506 pessoas na Terra Indígena Tereza Cristina, município de Santo Antônio de Leverger e outros 104 em Pirigara, Barão de Melgaço.  

Esse texto visa causar um espanto sobre esse silêncio sepulcral que paira sobre as origens étnicas da tricentenária Cuiabá, evocando uma das suas raízes históricas, razão de ser. É certo que do resultado desses inúmeros contatos e trocas assimétricas, assimilação-negação, resultou no patrimônio cultural imensurável que chamamos pelo gentílico cuiabano.  

E por mais que se tente esconder esse passado indígena Bororo, é possível observar num olhar mais atento sobre os costumes da aldeia cuiabana essa alma ainda presente no cotidiano da cidade: seja no “desespero” gastronômico para saborear carne de peixe e comidas cozidas, como a mojica de pintado; no arroz sem “sá”; no jeito de saudar o outro, Xô Bugre, Xô Mano; no “djeito” de dormir na rede; no pé “ratchado”; no costume de tomar banho logo cedo; na forma de curar com chás e benzeções; nas codornas de barro pintadas com sauá; nos desenhos de cachara nos viadutos e principalmente, no amor incondicional pelo rio que deu nome à cidade, onde tudo começou. Talvez agora no fim, e não no começo, fique mais claro para todos o porquê me referi a essa cidade que nos acolheu como nossa aldeia que nos acolhe no dia em que completa 301 anos.  

Suelme Fernandes é Mestre em História pela UFMT, siga no Instagram: @suelmefernandes          

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