A mídia mato-grossense vem noticiando, há alguns dias, que o Ministério Público interpôs ações civis públicas em face da APROSOJA-MT e de vários agricultores.
O mote dos processos seria a ocorrência de possível ofensa a regras fitossanitárias quando da realização de pesquisa em algumas áreas do estado. A pesquisa visa obter informações em face a alegado equívoco na calendarização do plantio de soja, imposto pelo INDEA/SEDEC via instrução normativa datada de 2015.
Não fui eleita com o apoio do agronegócio e nunca me intitulei Senadora do agro, mas como pessoa pública eleita pelo povo mato-grossense me vi na obrigação de me informar melhor a respeito, uma vez que uma das alegações do Ministério Público é de possível ofensa ao meio ambiente.
Em artigos, revistas e vídeos que encontrei pude vislumbrar alguns dados que são de extrema importância, sobre os quais penso que a população deva ser informada.
Afinal, somos um país essencialmente agrícola e Mato Grosso é basicamente dependente dessa atividade, de modo que os destinos do agronegócio são diretamente ligados aos de todos os outros setores da economia.
Durante minha investigação encontrei argumentos variados, tanto contra quanto a favor da instrução normativa n. 02 de 2015, que instituiu o que leva o nome de “calendarização do plantio”.
Para melhor compreensão do leitor, é preciso que se exponha, primeiro, que há exigências legais e científicas a serem seguidas pelos agricultores e também para a edição de atos normativos.
Aos produtores cabe o respeito ao chamado “vazio sanitário”, que consiste no período em que é vedado qualquer plantio. Aos legisladores, especialmente em se tratando de medidas fitossanitárias, se respaldar em pesquisas científicas.
O objetivo do vazio sanitário é evitar a proliferação da ferrugem asiática, praga que advém de um fungo biotrófico, ou seja, que precisa de plantas vivas para se desenvolver e é totalmente dependente das condições climáticas para sua evolução.
A ferrugem asiática tem alto potencial de danos econômicos e por isso exige muito rigor na adoção de técnicas, manejos e uso de tecnologias, tanto por parte do produtor, quanto das indústrias químicas e também do próprio governo.
O vazio sanitário é uma das formas de manejo que melhor atende à agricultura sustentável, vez que extingue a praga por falta de plantação e também pela falta de água. Ocorre entre 15 de junho e 15 de setembro em Mato Grosso.
Nesse período, todas as plantas vivas que possam servir como hospedeiras devem ser eliminadas, seja por uso de produtos químicos ou pelo gradeamento da terra. Até onde se tem notícias, os produtores entendem a importância da medida e a obedecem sem maiores problemas. O período hoje chamado de vazio sanitário foi instituído no ano de 2006 em Mato Grosso.
Fomos o estado pioneiro na adoção dessa técnica, que só veio a ser recomendada pelo Ministério da Agricultura nos demais estados a partir de 2007.
Ocorre que aproximadamente em 2011, em virtude da diminuição do preço do milho, os agricultores optaram por plantar soja sobre soja, a então denominada “safrinha”, o que causou um grande problema, já que facilitou a sobrevivência da ferrugem asiática por maior período e contribuiu para a resistência da praga aos defensivos existentes.
Diante disso, foi recomendado, apenas com base em evidências, sem pesquisa apropriada, a dita calendarização, visando diminuir a janela de plantio.
A medida, que estipulou o dia 31 de dezembro como data limite para o plantio da soja, realmente diminuiu o período de permanência da cultura no campo, evitou o plantio de soja sobre soja, mas acabou gerando outro impasse: os agricultores que necessitam plantar, complementarmente, suas próprias sementes e os próprios sementeiros acabaram ficando prejudicados porque a data limite é, tecnicamente, a pior época para o plantio, devido à alta frequência de chuvas, especialmente no mês de janeiro e coincide com os plantios da safra, época ideal para o desenvolvimento da ferrugem asiática.
O plantio na época em que as chuvas são quase que ininterruptas acaba causando graves problemas econômicos e ambientais, já que amplia a necessidade de aplicação de produtos químicos, até porque a própria chuva acaba lavando os fungicidas, não eliminando a ferrugem e espalhando os produtos no solo.
Há registros de que as plantações feitas em dezembro acabam exigindo até dez aplicações de defensivos, muitas vezes com até três componentes químicos diferentes cada. Essa situação, por óbvio, pode aumentar a resistência da praga, tornando cada vez mais ineficiente o seu controle.
É nesse sentido que a instrução normativa peca e por isso merece ser alterada, já que contraria seus próprios objetivos, que são evitar a proliferação da praga e aumento da resistência aos produtos químicos.
É certo que a EMBRAPA deveria realizar pesquisas que embasassem essas constatações, porém, inexplicavelmente não o faz e, por esse motivo, os próprios agricultores se viram obrigados a fazê-lo.
Foi com esse intuito que a APROSOJA, representante dos sojicultores mato-grossenses, resolveu tomar a iniciativa da realização da pesquisa, que só se iniciou depois de várias audiências de mediação, para as quais fui inclusive convidada, ocorridas no ano de 2019, nas quais participou também o órgão responsável pela autorização da pesquisa, o INDEA, além da SEDEC, MAPA, SEMA, Aprosoja, dentre outros, isto em âmbito de uma câmara de mediação reconhecida pelo poder público, a AMIS.
Devo apontar, também, que ainda no ano de 2019, participei de reunião com a Ministra da Agricultura, na qual a mesma garantiu que mudaria a data do calendário, desde que houvesse pesquisa científica que comprovasse tal necessidade, mas a empresa pública jamais se manifestou neste sentido.
A realização da pesquisa é, portanto, fundamental para que se chegue à conclusão razoável sobre o tema. Não cabe a quem quer que seja a proibição de pesquisa científica, desde que adotadas as normas metodológicas pertinentes e feita com responsabilidade e, ao menos sem que se tenha base fática robusta, não se pode duvidar da expertise dos pesquisadores e instituições de pesquisas envolvidas.
Estamos em pleno século XXI e não podemos nos portar como se fôssemos medievais. É a ciência que move o mundo. Nessa esteira, penso ser pouco razoável a alegação do Ministério Público de que a realização da pesquisa possa causar dano social, econômico e ambiental, vez que toda as evidências mostram o contrário.
As áreas selecionadas são pequenas, com no máximo 50 hectares cada, ou seja, são meras amostragens, de modo que inexiste perigo iminente, especialmente pelo respeito integral ao vazio sanitário, que em Mato Grosso, é o mais extenso do país. Os argumentos do Ministério Público não encontram base fática suficiente, nem sob a ótica jurídica, tampouco sob a científica.
Afinal, a pesquisa está em andamento, o período de chuvas já está acabando, de modo que é prematuro prever o acidente ambiental aventado pelo parquet. Ademais, pude averiguar que há inúmeros outros problemas, estes sim, que precisam ser encarados pelos órgãos de defesa vegetal e até pelo Ministério Público.
É preciso averiguar o que ocorre nas lavouras de algodão, tomadas por plantas invasoras de soja, em cujos cultivos se aplicam até mais vezes os mesmos fungicidas utilizados para controle da ferrugem.
E sobre estas invasoras não há quaisquer restrições, apesar de estarem no campo exatamente no mesmo período das lavouras que se quer destruir, o que me parece um total contrassenso.
Ainda durante as buscas que fiz sobre o assunto, encontrei várias matérias jornalísticas que contrariam a presunção da promotoria, uma vez que apontam que a soja plantada nas áreas de amostragem contém muito menos ferrugem, com menor uso de pesticidas do que a que é encontrada normalmente nas lavouras cujo plantio obedece à calendarização.
Nessa toada, não é difícil concluir que há possibilidade concreta de mudança da data limite de plantio, com diminuição de custos e também de aplicação de produtos químicos. A constatação ainda não é definitiva, mas só será possível saber a resposta se a pesquisa prosseguir.
Impedi-la é negar o direito de se comprovar o equívoco no calendário e, mais do que isso, negar a comprovação de que é possível utilizar menos defensivos do que hoje acontece.
Não é demais lembrar que a discussão refere-se apenas ao direito dos produtores de plantarem suas próprias sementes, sem se obrigarem a adquiri-las das empresas sementeiras.
O que se discute não é o período da safra de soja, mas apenas o período em que os produtores podem plantar para a produção de suas sementes, o que ocorre em áreas muito menores.
É um direito, acima de tudo, dos pequenos produtores. Há quem diga que por trás da celeuma estão interesses econômicos de grandes potências sementeiras e de obtentores de variedades de soja.
Acrescente-se a isto que com mais ferrugem mais se vende pesticidas e é possível que isto também interesse à indústria química, a qual também se opõe à mudança no calendário de plantio.
Verdade ou mentira, só saberemos se a pesquisa for concluída. A interrupção do trabalho científico e a destruição das lavouras-testes, ao contrário, terá o amargo sabor de que os poderosos tubarões do agro conseguem amordaçar e dominar toda a categoria sojicultora, com a agravante de fazer uso do Ministério Público para isso.
Longe de imaginar que a promotoria esteja agindo com má-fé, o que quero dizer é que a falta de elementos técnicos pode, sim, induzir o órgão a erro. E não se diga que mera nota técnica da Embrapa tem o poder de suplantar o resultado de uma pesquisa científica realizada por instituição abalizada como é a Fundação Rio Verde e o Instituto Agris.
Prudência e canja de galinha não fazem mal a ninguém. Espera-se que o Judiciário, último recurso do cidadão, tenha o cuidado de periciar as áreas envolvidas antes de tomar qualquer decisão. Pelo bem da agricultura. Pelo bem do meio-ambiente, pelo bem da economia Matogrossense, já tão surrada nesses tempos de corona vírus.
Selma Rosane Santos Arruda é Senadora da República (PODEMOS-MT), Juíza de Direito aposentada e jurista.