Anna Virginia Balloussier
Folha de S Paulo
Se 2019 é o ano em que tudo pode acontecer, por que não uma aliança entre uma das mais aguerridas bolsonaristas na Câmara, Carla Zambelli (PSL-SP), e um dos muques da esquerda por lá, Marcelo Freixo (PSOL-RJ)?
E para tomar uma posição, aliás, que bate de frente com a do governo Jair Bolsonaro sobre o tema: o cultivo de maconha para uso medicinal no Brasil.
O presidente já deixou bem claro que é contra. Disse na quinta-feira (1) que se alinha a seu ministro da Cidadania, Osmar Terra, no assunto. "Estou na linha dele nessa questão da maconha. Ele diz que abre as portas para o plantio de maconha em casa. Então seria bom conversar com ele. Ele é médico."
O tema há anos é cruzada pessoal de Terra. Em 2014, o então deputado escreveu artigo em que dizia: "Uma coisa é usar determinada molécula de uma planta para fins medicinais, outra coisa é usar isso como desculpa para se drogar. Usar drogas nunca foi nem será tratamento para qualquer doença, muito pelo contrário".
A discussão esquentou após a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) —que é da alçada de outra pasta, a da Saúde— colocar em debate a proposta de liberar o plantio de Cannabis, matéria-prima para remédios que ajudam no tratamento de males como epilepsia e Parkinson.
Zambelli diz entender a desconfiança de Bolsonaro e Terra. Afinal de contas, ela já esteve no lugar deles.
A percepção sobre o tabu entre conservadores como ela mudou após entrar em contato com famílias que enfrentavam doenças raras e precisavam de medicina à base de canabidiol, um derivado da Cannabis que não dá "barato" por não ser psicoativo.
Estudou o tema, pois "tinha um pouco de preconceito em relação a isso", afirma Zambelli, que ri ao perguntar se já experimentou maconha ("foi engraçada essa pergunta"). Ela é contra o uso recreativo da planta.
"Estudando o caso, descobri que a gente tem legislações super interessantes no mundo todo." O exemplo de Israel, um país pelo qual bolsonaristas nutrem particular afeto, pareceu-lhe bom.
O governo local tem inclusive uma lei que permite a exportação da Cannabis para fins terapêuticos. A última eleição geral israelense teve até um candidato de extrema-direita que pregava a legalização da erva, Moshe Feiglin.
Zambelli vive às turras com o partido de Freixo. Já tuitou que, se o PSOL "não sabe brincar, não deve descer pro play", após desavença com o presidente da sigla, Juliano Medeiros. Também já foi alvo de psolistas por comentários como uma reação sua ao fim das curtidas no Instagram: "Tudo para a gorda feminista peluda do cabelo roxo não ficar deprimida ao ver o desempenho da coleguinha na rede".
Mas levantou a bandeira branca pela causa verde. "Nesse meio do caminho, vendo que existem muitos preconceitos com relação a isso [maconha na medicina], pensei em juntar esquerda e direita numa coisa que poderia ser algo comum pra todo mundo, independentemente de ideologias, enfim."
Foi ela que procurou Freixo. A ideia inicial era unir forças para assinarem juntos um projeto de lei que autorizasse a plantação da Cannabis para pesquisa científica e elaboração de remédios. A esquerda que depois corresse atrás de outra proposta legislativa que abordasse o consumo recreativo, diz.
Como já havia um projeto similar, do colega Fábio Mitidieri (PSD-SE), tramitando, Zambelli e Freixo deixaram de lado a ideia de protocolar um texto novo. Mas estarão do mesmo lado numa comissão que discutirá o tema.
"Desde o início o foco do projeto era permitir o uso medicinal, o que já ocorre em vários lugares do mundo. Apesar das nossas diferenças ideológicas, é possível ter acordo sobre isso, porque é uma medida sensata que vai melhorar a vida de milhares de pessoas", afirma Freixo. "Hoje, só é possível usar a substância por meio de ação judicial, o que é caro e burocrático. O uso recreativo nunca esteve no horizonte dessa proposta."
O deputado do PSOL lembra que ele e Zambelli integram o mesmo Grupo de Trabalho que analisa as propostas do ministro da Justiça, Sérgio Moro, para Segurança Pública e combate à corrupção. Viu que um diálogo era possível. "Nos aproximamos aos poucos, depois que eu prestei solidariedade e manifestei minha preocupação após ameaças ao filho dela."
Para Zambelli, descobrir que várias mães dependiam de importação ou produção caseira de maconha para zelar por filhos doentes foi o ponto de virada. "Acho que é uma questão de saúde. Tem que estar acima de tudo: religião, política, tudo mais."